Promotora avalia quadro de abuso contra crianças e adolescentes
Com a mediação da gestora de Educação, professora Vasti Ferrari Marques, o programa Educação em Tempos de Pandemia, levado ao ar todas as quartas-feiras, ao vivo, pela TVTEC nas redes sociais e no Canal 24, contou com participação da doutora Ana Beatriz Sampaio Silva Vieira, promotora da Vara da Infância e da Juventude na cidade. O tema do programa foi A violência contra a criança e o adolescente.
O programa colocou em foco o combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Vasti abriu suas considerações falando da importância da proteção e autoproteção deste público, especialmente num momento de isolamento social surgido com a pandemia do Novo Coronavírus, iniciada no Brasil em março deste ano.
VASTI/TVTEC – Nesses tempos de pandemia, a preocupação com esse trabalho de condução na orientação sobre como evitar esses abusos e a exploração é maior?
DOUTORA ANA BEATRIZ – A situação de confinamento preocupa. Estima-se no Brasil que a cada hora quatro crianças ou adolescentes sofrem algum tipo de abuso sexual. Não falo sobre todos os tipos de abuso, neste momento. Se falarmos de agressões físicas, violência psicológica, esse número cresce muito. Os dados mostram que 10% dessas situações chega ao conhecimento do sistema de Justiça ou de proteção. Em tempos normais já vivemos um quadro de subnotificações das situações de violência. Se essa situação de violência não chega ao conhecimento das autoridades de repressão e proteção, como vamos quebrar esse ciclo?
E como fica esse quadro num momento de isolamento, de distanciamento social?
O momento de isolamento social preocupa muito mais, porque o confinamento agrava o estresse das famílias, pela própria situação de confinamento. Todo um grupo familiar, num único ambiente, dividindo espaço de trabalho, de Educação, de organização de um lar, de forma ininterrupta, por dias, meses… Esse conjunto, as incertezas em relação à Saúde, os números crescentes de contaminação, a incerteza econômica, de emprego, renda… Todas essas situações potencializam um cenário familiar propício à violência. E é óbvio que a criança é o elo mais fraco da entidade familiar, portanto ela deve sofrer mais com esse quadro. E nós sabemos que 70% dos casos de abuso ocorrem no ambiente familiar. Esta é a situação mais comum. A violência contra a criança e o adolescente ocorrem nos ambientes de afeto onde eles vivem.
Existe uma especificação dos tipos de violência que as crianças sofrem em seus lares?
Sim. A lei 13.431 enumera os tipos de violência que a criança pode sofrer. São de quatro ordens. A primeira é a violência física que é aquela que inclui qualquer ato destinado a ofender a integridade física ou a saúde da criança ou cause sofrimento físico. É a agressão, propriamente dita. A violência psicológica, subdividida em algumas espécies. São os atos de humilhação, de desmerecimento, discriminação, depreciação, exclusão de qualquer ambiente do vínculo social, ridicularização, indiferença, atos que redundam em sofrimento psicológico da criança e têm um impacto enorme no desenvolvimento biopsicossocial dessa criança.
Existe alguma outra forma de violência psicológica?
Sim. Outra forma é a que a gente conhece por alienação parental. A conduta praticada por pai ou mãe, que de algum modo busca minar a relação que o outro tem com a criança. A mãe (ou pai) que desmerece o outro perante o filho, ofende, injuria na expectativa de romper, fragilizar o vínculo que o filho tem com o outro ente parental. Vínculos fortalecidos com pai e mãe são absolutamente importantes para o desenvolvimento de criança. Outra forma ainda de violência psicológica, temos a situação das crianças que crescem em lares em que testemunham violência contra pessoas do seu vínculo social. Pai que agride mãe, por exemplo. São formas que comportam olhar de todo o sistema de proteção e garantia da infância e juventude. E temos ainda o abuso sexual, caracterizado não somente pela prática de atos sexuais. Toda e qualquer situação, ato libidinoso praticado contra a criança ou adolescente, mesmo a exposição do corpo, o nu infantil, a exposição da criança a vídeos inadequados constituem formas de violência sexual. Há ainda a exploração sexual – atos com fim de obtenção de algum tipo de compensação. Por fim, existe a violência institucional praticada pelos organismos de defesa da criança e adolescente que de algum modo não acolhem a demanda da criança ou adolescente adequadamente, por insensibilidade ou outro motivo.
Como é que os sistemas de proteção atuam em favor das crianças e adolescentes? Existem protocolos de denúncias que as pessoas precisam conhecer?
A lei de proteção das crianças e adolescentes traz os critérios para o estabelecimento de protocolos de encaminhamento. Muito importante em relação a isso, é deixar bastante claro que toda situação de violência contra a criança ou adolescente comporta dois tipos de atuação. Primeiro, é a atuação a que estamos mais acostumados a pensar, que é o sistema de repressão para garantir a punição daquele que praticou o ato de violação. Mas mais do que isso, o sistema visto pela lei traz a proteção da criança e do adolescente.
Muito importante, a experiência nos diz, é que façamos bons registros do que está acontecendo na escola, levando em conta a situação relatada pela criança, as alterações de hábitos e comportamentos delas…
Sem dúvida alguma. Porque aquela situação em que a criança de fato relata um ato de violência, muito mais facilmente permite que seja disparado todo o sistema de repressão, de responsabilização e de proteção. No entanto, há muitas situações em que a gente tem a observação de uma situação de desproteção. E a escola tem marcadores para isso. A criança que muda de hábitos alimentares, que de repente está tristonha no ambiente escolar ou passa a ser agressiva… Esses marcadores indicam situações de desproteção que comportam inicialmente não disparar o sistema de responsabilização, mas o sistema de proteção. E aí sim, chamar a família, compreender a família, notificar o fato ao Conselho Tutelar e trabalhar a capacidade protetiva da família. Educar a família para a proteção. Educar a criança para a autoproteção, principalmente no que diz respeito ao abuso sexual.
O que como promotora da Infância e Juventude você sugere para a escola, nesses tempos de pandemia, com as aulas suspensas, as crianças em casa, os professores trabalhando remotamente, para que as crianças não se esqueçam da importância da escola na vida delas?
Primordialmente, manter o vínculo. É importante a criança ter a memória, a vivência, não só da memória da matéria que recebe pelo caderno, mas da professora, do professor, e até que o material preparado para elas comporte a abordagem de temas como esse que tratamos hoje – o cuidado, os afetos, jogos que permitam trabalhar o estresse, o sentimento de raivas, que as famílias sentem nesse momento de isolamento, para que elas se trabalhem e consigam seguir em frente de forma mais protetiva com seus filhos. É um momento importante para a capacitação dos profissionais, com tarefas acumuladas. É um momento em que a Educação pode capacitar os profissionais. Nunca tivemos tantas lives sobre Educação, cuidado, proteção na internet. Acredito que seja papel da escola e da família – pensando na violência sexual – tratar a questão da sexualidade de forma saudável e adequada.
(Fonte: EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA #04)